Música negra, de Leroi Jones (Amiri Baraka) 2021 (2012)

 

Música negra, de Leroi Jones (Amiri Baraka) é uma recolha de textos publicados nos anos 60, em diversas revistas da especialidade, Down Beat, Metronome, Jazz Review, Negro Digest, Wild Dog e ainda Kulchur, de que foi editor. Ao livro original, de 1967, a presente edição foi acrescentada de uma introdução do autor, de 2009, em jeito de posfácio uma entrevista de Calvin Reid a Amiri Baraka retirada da Publishers Weekly, do mesmo ano, e ainda um prefácio por Kalaf.

Escritor, poeta, crítico de música, editor, músico, também, e militante da causa negra, Amiri Baraka tornou-se uma das mais proeminentes vozes da divulgação do free-jazz dos anos 60, mas ele tinha um conhecimento profundo da tradição musical negra, de que falava com propriedade.

O livro começa com um pequeno texto, publicado na Down Beat em 1963, «O jazz e a crítica branca», em que ele diz basicamente que a crítica branca não consegue compreender o Jazz porque utiliza os critérios da música ocidental branca: «... ao potencial crítico de jazz bastava apreciar a música, ou o que quer que achava que era a música, sem precisar de compreender as atitudes que a produziram...»; ou «As notas têm um significado; e esse significado, independentemente de considerações estilísticas, é uma parte da psique negra e do modo como ela dita as várias formas da cultura dos negros», ou ainda «Os catalisadores e a necessidade da música de Coltrane devem ser compreendidos por si sós, ainda antes de serem expressados por meio da música». E Amiri Baraka (à altura ainda Leroi Jones) não é carinhoso com a crítica branca: snobs, jovens insolentes, ignorantes, etc...

Na primeira parte do livro o autor seleccionou motivos clássicos, dedicando uma segunda parte ao free. A seguir a um polémico texto dedicado à crítica branca, Amiri Baraka fala do Minton’s e das razões que assistiram ao nascimento do bebop; a Billie Holiday - «às vezes dá medo ouvir esta senhora» -; Thelonious Monk («O Monk recente», capa da Time, e Baraka parece aborrecer-se com o êxito de Monk e dos seus fãs: manadas de estudantes universitários, turistas...); Coleman Hawkins, Lester Young e Charlie Parker, «Três maneiras de tocar saxofone»; Roy Haynes; Sonny Rollins e John Coltrane; antes de falar de «A Vanguarda do Jazz».

Amiri Baraka fala do «inventor do saxofone» quando fala de Hawkins, do primeiro a fazer «“estritamente” música de saxofone» ao falar de Lester Young, e solista entusiasmante para falar de Parker, e o texto serve como introduçao para os solistas seguintes, Rollins, «Our man in jazz», e Coltrane, que lhe merece dois textos diferentes. Coltrane é «Um grande do jazz», que «está algures entre o chamado mainstream ... e aqueles jovens músicos a que chamei de vanguarda». Os dois capítulos falam dos discos «Giant Steps», «Coltrane Jazz», «My Favorite Things» e ainda o «Live at Birdland», cujo texto foi incluído no disco da Impulse!

«Definitivamente há hoje uma vanguarda no jazz», começa Amiri Baraka, num texto de 1961, e «A maior contribuição da vanguarda é melódica e rítmica», apresentando-a de certa forma como um produto do bebop e do jazz clássico, seja como continuidade, seja como rotura - ainda que com o olho no passado, mas eu diria que nos textos seguintes ele alterna este olhar e uma liberdade formal que não parece referir-se a nada, como no texto de Sonny Murray. Quando escreve sobre Archie Shepp, ele é claro: «O músico negro é um reflexo do povo negro enquanto fenómeno social e cultural», mas em Burton Greene a ligação ao passado ou ao povo desaparece, e a violência do pianista pode surgir fátua.

Os seis «Apple Cores» foram colunas na Down Beat e Wild Dog, e pretendiam-se «registos passageiros, mas também guias para a nova música e reacções ao mundo do jazz na América». Amiri Barak falava da noite nova-iorquina onde o free jazz fervilhava, mas também da cena pop-rock-funky-soul-blues, e um pouco de tudo. Dava conta da situação precária de muitos músicos, «que não tinham onde tocar ou gravar», apesar do enorme contributo que eles estavam a dar para o Jazz e a música; mas podiam ser também o registo de um concerto ou um músico. «Onde é que os novos músicos acabarão a tocar?», perguntava, ou falava da criação da ESP, «Albert Ayler é o som do momento» ou a Sun Ra & his Myth Science Arkestra é a «primeira big band da Nova Música Negra».

Jones-Baraka fala do «Jazz nos Lofts e Cafés de Nova Iorque», apresenta Wayne Shorter, Dennis Charles e Bobby Bradford, fala de Cecil Taylor na orquestra de Gil Evans, e «The World of Cecil Taylor», de Sun Ra, de Don Pullen e Milford Graves, de Archie Shepp por quem tem um óbvio apreço,  e o «Four for Trane», da importância de Don Cherry e da nova música «do negro de classe média» e o R&B, dos blues e dos espirituais, «as canções dos escravos que falam de libertação»; e não é meigo com a «música branca»: «Na verdade, quanto mais inteligente é o branco, mais facilmente chega à conclusão de que precisa de ir roubar ao preto» - e falava de Beatles e Roling Stones - ou «A Blowin’in the Wind do Dylan, que tocada por ele (Dylan) parece um jogo abstracto e artificial, transforma-se imediatamente quando Stevie Wonder a canta... Isto é: com Dylan soa simplesmente a uma ideia, a um sentimento... Com Wonder ... sentimos que fala da vida...»; ou, já agora, e enfim: «o cool foi uma forma branca e degenerada do bebop»...

O livro conclui-se com uma entrevista (que obviamente não constava do livro original) a Amiri Baraka, em 2009, em que o autor procura contextualizar o livro: «foi mesmo uma era dourada... Havia uma cena musical antiga ainda activa, que ainda criava (Count Basie ainda mexia, Coleman Hawkins e Billie Holiday ainda estavam vivos). E ao mesmo tempo foi o período em que apareceu uma cena nova muito vigorosa... com os Ornette Colemans e os John Coltranes. Trane era ele próprio a vanguarda...».

E sobre o livro: «É como se fosse uma gravação ou uma fotografia da altura, de como eu era... o livro é o retrato de um tempo e de um lugar, não poderia ser de outra maneira.»

Eram tempos de radicalismo, os movimentos civis  e de libertação negra, do black power e dos assassinatos de Kennedy e de Malcom X, o boicote aos autocarros em Montgomery. Enfim, se seis décadas depois a América já teve um presidente negro, também teve um George Floyd e tem Trump como presidente, e algumas das coisas que Amiri Baraka escreveu correm o risco de se tornar actuais...

Música negra é um livro datado, «um registo de época» que merece ser revisitado. E Leroi Jones/ Amiri Baraka falava de dentro, da verdade da música negra, com um entusiasmo tocante. Se a vanguarda de que Baraka fala há muito desapareceu, poucos falarão dela, e desse tempo e desse lugar, com igual honestidade e propriedade.

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